O índio brasileiro é sempre puro, ingênuo e possui notável força física, como o jovem Peri, a bela Iracema ou o guerreiro Ubirajara dos romances do cearense José de Alencar (1829-1877).

Correto? Não. Então, ele deve ser tão selvagem quanto perigoso, tal como foi pintado ainda antes, no século 16, nos relatos do mercenário alemão Hans Staden (1525-1576).

Correto? Também não. Embora seculares e ultrapassadas, essas imagens ainda perduram e predominam no imaginário nacional quando se representa a população indígena.

Avançar na desconstrução desses estereótipos e aproximar o público das práticas de linguagem e de uma expressão mais autêntica são as linhas de força do Festival da Literatura Indígena, que foi idealizado pelo escritor Samuel Medeiros.

A partir desta quarta-feira e até sábado, o festival promove uma série de palestras e de oficinas no Sesc Cultura e na Biblioteca Pública Estadual Dr. Isaías Paim.

Na sexta-feira, às 20h, no átrio do Sesc, o evento recebe o grupo de rap indígena Brô MC’s, de Dourados (MS), para um show musical.

Todas as atividades são gratuitas e foram bancadas por recursos do Fundo de Investimentos Culturais (FIC), da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.

“Literatura indígena é aquela escrita por escritoras e escritores indígenas”, define a pesquisadora Rosana Zanelatto, responsável pela curadoria do evento, lembrando uma antiga lição escolar: autores como Alencar devem receber a classificação de indigenistas.

“Na literatura indígena, o criador é um indígena, um representante daquele lugar. No evento, a literatura indígena está presente porque temos escritores, escritoras, intelectuais indígenas. Isso é importante. Ainda que eu e outros colegas não indígenas escrevamos e pesquisemos sobre literatura indígena, nós não somos indígenas e temos visões ainda calcadas em uma perspectiva ocidentalizada, eurocêntrica desse lugar ocupado pelo indígena”.

Apesar do alerta da pesquisadora, é bom ter em mente que alguns autores, a exemplo de Antonio Callado (Quarup, 1967) e Darcy Ribeiro (Maíra, 1976), mesmo sendo de origem “cara-pálida”, deram uma contribuição valiosa para uma perspectiva mais ampla sobre a presença indígena no País.

Entre os palestrantes do festival estão autores de peso da legitimidade étnica defendida pela curadora, a exemplo da poeta Gleycielle Nonato, de Coxim (MS), que vai falar sobre o tema “Regionalismo e oralidade no âmbito da literatura indígena”, e do escritor Daniel Munduruku, de São Paulo, que vai abordar “A nova linguagem da literatura indígena”.

A noção de povos analfabetos e ágrafos é restritiva, afirma a curadora. “Os indígenas podem não ter letramento no texto escrito, mas conhecem e leem o mundo por via da oralidade, outros modos de pensar, compreender e acessar o mundo”.

Rosa Zanelatto sugere um termo ainda mais específico – literatura indígena brasileira contemporânea – para superarmos o imenso prejuízo da cultura eurocêntrica.

“Estamos justamente tentando desmistificar esses conceitos. Observamos que parcela significativa dos indígenas está se adentrando na política, nas artes, na literatura e nas universidades. Entramos em contato com as aldeias periféricas de Campo Grande visando convidá-las ao evento, inclusive reservando assento preferencial a elas nas palestras e oficinas”, afirma Samuel Medeiros.

“Estamos perdendo muito em história”, afirma a pesquisadora.

“Durante muito tempo só ouvimos as narrativas históricas da boca dos colonizadores, dos brancos, dos heterossexuais, do homem de classe média. Temos que ouvir outras histórias”.

“Há um ingrediente de memória na literatura indígena que é muito importante e significativo, a memória de todo um percurso de opacificação e de silenciamento e que hoje é colocada na mesa e à mostra para os leitores. É importante inserir, não sei se é o melhor verbo, o índio como sujeito brasileiro, e como um sujeito no universo, não como um objeto, e aí vêm à tona as subjetividades”, completa.

Apesar da politização e do engajamento que perpassam a proposta de um festival com esse perfil, Samuel Medeiros ressalta que a ideia é desviar de “temas mais óbvios” abordados pela imprensa, como a demarcação de terras em pauta no STF e os conflitos agrários.

“Tentaremos nos fixar na área da ficção, se bem que não se pode ficar alheio a temas que interessam à comunidade indígena e a toda a sociedade”, pondera o idealizador do evento.

É isso aí, melhor mesmo passar a palavra para eles. As inscrições para as oficinas, com o limite de 20 vagas, podem ser feitas pelo link: bit.ly/oficinasfestivaldaliteraturaindigena. O público máximo por palestra será de 60 pessoas, e para o show musical de 80 pessoas.

Programação
Palestras

Sesc Cultura, 19h

20/10 – Abertura do Festival

20/10 – Escritora e poeta Gleycielle Nonato (Coxim/MS)

Tema: “Regionalismo e oralidade no âmbito da literatura indígena”.

21/10 – Escritora e professora Graciela Chamorro (Dourados/MS)

Tema: “Palavras que curam; rituais e cantos terapêuticos Kaiowá”.

22/10 – Escritor Daniel Munduruku (SP)

Tema: “A nova linguagem da literatura indígena”.

Oficinas

Biblioteca Pública Estadual Dr. Isaías Paim

21/10, das 15h às 18h – Oficina literária com o professor Wellington Furtado, da UFMS

Tema: “A criação poética – Um caminho pela arte de compor e dizer poesia”.

22/10, das 09h às 12h – Oficina literária com a professora Raquel Naveira, da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras

Tema: “Oficina poética sobre o idioma guarani”.

23/10, das 09h às 12h – Oficina literária com a escritora Julie Dorrico (Porto Velho/RO)

Tema: “A literatura estética – O Boto e o Curupira”.

Show

22/10, no átrio do Sesc Cultura, 20h

Grupo de Rap Indígena Brô MC’s, de Dourados/MS.

Serviço

Sesc Cultura – Av. Afonso Pena, nº 2.270

Biblioteca Pública Estadual Dr. Isaías Paim – Av. Fernando

Corrêa da Costa, nº 559, Campo Grande/MS

Fonte: Correio do Estado